segunda-feira, 12 de outubro de 2020

"...O Mago mandou avisar..." (Alcohol- Jorge Benjor)

 



Como diria o ditado gaudério: Mas está vivo quem peleja!

Costumo dizer que sal, mel, ovos, alguma carne defumada e Cachaça é bom sempre ter em casa. Violão também. Poderia discorrer sobre cada um desses elementos isoladamente mas vou me ater à Cachaça, mais especificamente ao seu espírito, o álcool.  

Defendo que mesmo aqueles que não bebem podem utilizá-la com bom uso. O abstêmio mais “raiz” pode consumir cachaça para pururucar uma pele de porco ou uma boa e velha massa de pastel.                                                                                                                 Os assados temperados com Cachaça abrem as portas da percepção ainda mais quando se utilizam madeiras intensas como a Amburana, o Bálsamo ou o consagrado Carvalho. A prata ou inox já têm seu lugar garantido no afeto dos temperos.

Poderia ainda enveredar pelos caldos de nossa rica culinária (já chamada de “primitiva” por experts) que podem levar Cachaça como um rico “realçador de sabor”.

Conservas de pimenta dão ótimos resultados quando descansam em nossa brasileira bebida.

 Ainda não vai ser hoje que vou falar das sobremesas mas elas dão o que falar... 

Há também os que utilizam o álcool como terapia junto com fumo de rolo, Neen, Cravo da índia ou Citronela para salvar alguma planta ornamental de algum fungo ou salvar a “própria pele” nas epidemias de dengue e Chikungunya que nos visitam em todo verão.  

A percepção da importância do álcool na história da humanidade mudou muito nesses dias (espero que tenham refletido, pelo menos!).

Já temos uma geração de crianças que para além das tradicionais referências do álcool dos postos de gasolina ou mesmo dos alambiques, agora terá a referência do álcool em gel, ou do álcool 70%, campeão nos sprays na cerimônia de limpar todas as compras pós mercado e feira. Alguns da minha geração se inebriavam com o álcool das provas da escola saídas quentinhas do mimeógrafo.  

Assim que a pandemia eclodiu no país compartilhei com um pequeno grupo (meio em tom de brincadeira, meio sugestivo) sobre a possibilidade de alambiques doarem suas “Cachaças de Cabeça” (ou álcool 70%) para a prevenção do Covid-19. Alguns produtores já tinham esse hábito, outros fizeram essa generosa oferta mostrando que por mais atacada que seja nossa Cachaça, sua essência enquanto bebida destilada (daí os óleos essenciais) está na busca pelo “elixir da vida”, uma “Água da vida” (Au de vie, Ácqua Vitae). Não deixe de conferir essa linha do tempo

Foram várias as destilarias do Brasil que doaram e ainda doam seu “álcool 70” para a saúde pública.

Como o assunto também é “terapêutico” não há como ignorar que na história o papel da cura ou tratamento do corpo e do espírito consideraram o álcool como base para poções, extratos, essências, trabalhos, feitiços e toda sorte de produto que no caráter ritual e cerimonioso (portanto muitas vezes acompanhado de música) “quebrou  o galho” da saúde de muita gente.   

                                                                                                                                             Nesse sentido é bom lembrar que para muitos povos no mundo a comida é alimento não só para o corpo, logo aqueles que cozinham são considerados além de cozinheiros, mag@s, curandeir@s, xamãns.


Como todo antídoto, o álcool possui a posologia adequada para cada “estado de espírito”, situação e local. Considerar isso é um exercício de autoconhecimento e sabedoria. Errar na dose pode trazer problemas sérios principalmente quando o erro é frequente. MUITO CUIDADO!


A história do álcool talvez seja a maior prova de como religiosidade, medicina, psicologia, alimentação, antropologia, geografia, música, enfim... ciência e conhecimento, são parte desse universo diverso e controverso que envolve o próprio álcool.


Nada mais paradoxal do que o álcool destilado que queima como o fogo, se assemelha visualmente com água e evapora como o ar lembrando que o destilado é fruto do fogo e da água. Por estas e outras foi considerado na antiguidade a “Quintessence” ou “Quintessentia”, o quinto elemento essencial ou elemental  depois da Terra, Ar, Água e Fogo.


O álcool dos vinhos da segunda guerra, o álcool da cerveja contra a cólera na idade média europeia, o álcool da máfia de Al Capone, o álcool da Revolta da Cachaça, afinal “...o mar da história é agitado...” como diria o poeta russo Maiakóviski grande apreciador de Vodka pelo que dizem.  


Destiladores Huichol.
Fonte https://www.researchgate.net/figure/Types-of-Huichol-Stills-1900-2003_fig3_333194543




Ainda falando sobre “cura” paro e reflito se seria por acaso que na região mexicana da Tequila (Sierra Madre entre os estados de Jalisco e Nayarit) encontraríamos os Xamãs Huichol que se reconhecem como curandeiros (“Wixarika”). Lembro da Jurema nordestina, de nossas garrafadas e antes mesmo de refletir sobre o Exu Iorubano ou as entidades do “Marafo” da Umbanda e sua relação com nossa bebida sou abordado por uma senhora na plataforma do metrô. De máscara e saia longa me entrega um panfleto de uma igreja que vai “libertar as pessoas do vício do álcool”.

Aceito o papel e imediatamente ela borrifa álcool em suas mãos entrando no vagão.  


Dedico essa postagem ao alquimista Jorge Benjor que profeticamente anunciara as águas (água de beber, água de benzer,  água de banhar, alcohool só para desinfetar) e que discorrendo sobre os alquimistas ressaltara :

"...eles são discretos e silenciosos..." 

Aqui um link para quem quiser "tomar" desse álcool com os ouvidos

 Thiago Pires

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Sobre Escolhas

Por Thiago Pires

Seres humanos fazem escolhas e não pense você leitor que ter dificuldade para tomar decisões é uma característica só sua ou mesmo algo recente. 

Desde os povos mais remotos em diferentes localidades do globo os oráculos de alguma maneira ajudavam os mais indecisos na tomada de decisão com um pouco mais de segurança. Nossa relação com as decisões se dá a partir de elementos como as relações sociais, preferências pessoais e por mais estranho que possa soar por questões do inconsciente.

Tendemos a escolher por aquilo que nos satisfaz e o que satisfaz cada um é algo que envolve muitos elementos. Fato é que errar ou acertar são axiomas que precisam ser considerados a partir da trajetória de cada indivíduo que está fazendo a escolha.

No universo da música escolhemos desde cedo. Porque esse instrumento e não aquele? Você já parou pra pensar porque gosta mais de um timbre (som) do que de outro? Que música ouvir, que música estudar? Já parou para refletir que herdamos preferências musicais de nossa família? Depois que nos aprofundamos mais com a música a escolha é constante! Este ou aquele acorde? Repete a primeira parte ou vai direto para a segunda seção?

Em relação à cachaça as escolhas não são incomuns. Mesmo com nossas preferências lidamos com uma variedade de elementos que nos oferecem possibilidades de escolhas das mais diversas. Branca ou amadeirada? Baixo amadeiramento ou amadeiramento mais intenso? Desta região ou daquela? Mais suave na graduação alcoólica ou mais espirituosa? Antes da refeição ou após, como um aperitivo? Uma caipirinha ou uma dose pura? Não falo nem do elemento bolso!

Os amigos mais próximos sabem que para ABRIR UMA GARRAFA DE CACHAÇA considero quatro elementos: o primeiro, a comida que será servida, o segundo, o clima com suas chuvas e nublados que oferecem grandes possibilidades de harmonização, tanto na música quanto na cachaça, o terceiro elemento é uma cachaça que preciso “estudar” porque recebi de algum produtor que quer saber minha opinião ou de um amigo que recomendou muito. O quarto é se o instante ou dia de abrir a garrafa possui caráter de celebração.

Respeito os que bebem aborrecidos, tristes. Eu não! 

Para abrir uma garrafa de cachaça há que se ter uma aura de celebração para que o dia possa ser considerado “especial”. Isto pode significar que a mais comum das quartas feiras pode ser eternizada com uma garrafa perdendo seu lacre para celebrar um feijão caseiro. A visita ou encontro com amigos que bebem cachaça também é um bom motivo para considerar o momento especial, afinal ao se tirar o líquido da garrafa e compartilhar com alguém, neste exato momento se cria um vínculo que pode perdurar por muito tempo na memória. Ali na garrafa ela é só o verbo, daquele que “ainda não se fez carne e não habitou-o”.

Depois de algum tempo fui convencido pelo amigo Paulo Vieira (o confrade Paulo Tapinuã) a não mais guardar garrafas. Diz ele com seu jeito honesto:
 “(...) p@rr@# então eu tenho um trabalho do caralh...$%@..o pra fazer essa cachaça pra você guardar? Faz o seguinte: bebe o líquido, enche a garrafa com água e bota na prateleira"(...)”.

 Influenciado pelo produtor da Tapinuã dos Reis ESCOLHI guardar somente os rótulos que possuem em sua superfície ou a assinatura do produtor ou a data com o motivo da garrafa ter sido aberta. Acho que foi uma boa escolha.

Magnífica
A primeira vez que visitei o alambique da Cachaça Magnífica o fiz depois de uma viagem de bicicleta onde saíra do Rio com o amigo Marcelo Repinaldo. No total, cento e trinta quilômetros pedalados, sendo os últimos vinte de subida da serra que liga a Miguel Pereira. Programa cansativo, mas pra quem gosta, de lavar a alma!

 Na fazenda do Anil fomos recebidos pelo Dimas que nos apresentou todas as magníficas instalações. Meu amigo saiu de lá convencido de que levaria uma Magnífica envelhecida no carvalho (na época, a que tinha o rótulo preto impresso na garrafa) e no final do dia após a janta, em frente à piscina silenciosa da pousada, eu e ele conversamos sobre a viagem ao sabor meio amargo, meio doce daquele carvalho que ele teimara ou ESCOLHERA abrir no mesmo dia, ali mesmo.
Da esquerda para a direita: Marcelo, eu ainda cabeludo e um Dimas iluminado


Depois vieram muitas outras viagens de bicicleta, várias delas incluindo visitas a alambiques com o mesmo amigo. Tenho certeza que junto do lacre retirado daquela garrafa acabamos selando uma grande amizade. 

Meu amigo teria completado cinquenta anos no último dia treze de agosto se não tivesse falecido em julho. Não pudemos escolher.

 Quando soube de seu falecimento liguei para seu irmão Márcio que me revelou que prometera presentear Marcelo, caso "se comportasse"  com uma cachaça: "aquela do Thiago".

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Um doce de Salinas, uma Salinas doce
Da esquerda pra direta: o produtor da rapadura , o motoboy e eu o "cana boy"

Saio da propriedade dos Santiago e depois daquela imersão na história da fazenda Havana há poucos metros de distância da porteira, à margem da rodovia me deparo com uma moenda modelo trapiche. Como um cão farejador embrenho, ou melhor embrenhamos eu o piloto da moto naquele local de aparência rude.  Ali existia uma produção de melado, rapadura e um tipo de rapadura composta. Experimentei a de abóbora com côco e a de mamão. Ambas sensacionais! Recomendo MUITO! Este tipo de rapadura composta com queijo é uma iguaria que pode ser servida como sobremesa das refeições mais simples às mais aristocráticas.

Um trapiche. Peça de museu ali, utensílio aqui

 Neste local me chamou a atenção o orgulho do produtor da rapadura, sua simplicidade e atenção em mostrar os mais diferentes tipos de doce. As instalações certamente não foram visitadas pelo requinte e pelo cuidado com os equipamentos mas por  “farejar” e  perceber que ali, naquela foto de “Brasil profundo” certamente teria algo a aprender. 

 Nesta viagem aprendi que o doce regional de Salinas é essa rapadura, pelo menos para mim. Que a cana de Salinas é doce mesmo! Que o Bálsamo de Salinas tem cheiro de sertão, que cada lugar desse Brasil possui seu traço na produção e são vários os fatores que incidem para que essas diferenças aconteçam mesmo para quem está em Salinas ou na mais alta Novo Horizonte.

 Aprendi que o Brasileiro precisa realmente conhecer melhor os diferentes “Brasis” que coexistem. Vivemos em uma eterna busca por nossas raízes  pois fato é que a história dos homens comuns, dos  alambiqueiros, tanoeiros, fazedores de rapadura geralmente não está nas páginas dos livros. Esta história quando sobrevive, resiste na boca do povo, na tradição oral, na cachaça pois ela está e é a boca do povo.  Talvez por isso esse apreço tão grande pela preservação histórica por parte da família Santiago. Talvez por isso a preocupação histórica de muita gente como eu que coleciona rótulos, traquitanas, dornas, fotos. Para que no futuro não esqueçam as raízes, não esqueçam de onde saiu a cachaça, que gente a fez, e ainda faz. 

O norte de minas é um prelúdio do nordeste e suas desigualdades nos lembram do que fomos, do que somos e do que ainda podemos ser. Numa reflexão sobre "centro e periferia" concluo que não é Salinas que está longe. O Brasil de alguns é que está distante do Brasil. O Brasil de alguns que parecem ter vergonha ou pelo menos não tem orgulho, principalmente por desconhecimento. Em Salinas vi muita gente orgulhosa de sua história, orgulhosa do que produz, de sua relação com cachaça. Gente de pele morena, mineira de sotaque baiano, gente muito acolhedora. 

Parece que a Cachaça ainda é um desses elos com esses interiores e que ela, nossa amada cachaça, tal qual uma divindade vez ou outra nos cobra que se quisermos nos apropriar do discurso, da história da cachaça, teremos que olhar para nossas raízes, teremos que olhar para nosso interior.

E me vejo viajando em um mototáxi no interior do Brasil e reflito que esta fabriqueta de rapadura ou “casa de cozer méis” não estaria à margem da rodovia por acaso.

No universo da cachaça existe mais profundidade no copo do que imagina nossa vã filosofia.

Agradecimentos

À Cleber e Geraldo Santiago meu muito obrigado. Com o atendimento de vocês tenho certeza que a Havana/ Anísio Santiago continuará encantando muitas gerações e disseminando o legado da boa cachaça de qualidade plantado por Anísio Santiago.

À Tito Moraes pelas dicas, caronas e prosas. Voe alto meu Tiziu.

À Xavier por seu acolhimento, seu sorriso discreto e coração grande de Sabiá.

À Patrícia e Leandro da Ácqua Mineira pelas caronas, conversas e companheirismo.

À Sérgio da Obra de Arte por ser o melhor e mais generoso guia que poderíamos arrumar.

À Marcelo do Instituto Federal por suas dicas e receptividade.  

À você leitor que chegou até aqui nesta viagem comigo, um abraço forte como cachaça!

terça-feira, 2 de julho de 2019

A Fazenda Havana


Na Fazenda Havana




E assim de moto táxi subi em direção a Novo Horizonte. Havia marcado com Cléber e Geraldo Santiago minha ida pela manhã e às nove em ponto lá estava junto com o moto táxi na porteira da fazenda. Faço uma observação pouco modesta: a fazenda Havana não costuma abrir o alambique às segundas feiras sobretudo após o festival por conta do volume de visitas que recebem. Realmente abriram uma exceção para mim. Foi assim que me senti um honrado privilegiado!

Alguns pés de café na entrada do terreno, algum gado e chegamos à sede da fazenda Havana.


Construção simples e preservada na fazenda Havana- Salinas-MG

Sou recebido por Geraldo Santiago e logo depois por Cléber Santiago. Ambos como guias "arrebentam". Geraldo, à época,  residia em Porto Seguro e sempre volta a Salinas principalmente na oportunidade do festival. Conta a história da família, a quantidade de irmãos e sobretudo brilha os olhos quando fala de seu Pai, o Sr.Anísio Santiago.


Para saber um pouco mais da história do homem simples e produtor de cachaça Anísio Santiago recomendo a leitura do livro O Mito da Cachaça Havana- Anísio Santiago escrito por Roberto Carlos Santiago (Edições Cuatiara- 2006).

Anísio Santiago


Da importância da memória: sinergia na foto

O pioneirismo de Sr Anísio Santiago é percebido de diferentes maneiras. Um exemplo disto é que enquanto a luz elétrica só chega à Salinas em 1972 através de gerador à diesel a fazenda Havana já tinha luz desde 1960 com uma pequena usina no sistema Roda Peltron. A fazenda produzia o próprio café, o próprio açúcar, tinha sua autonomia de roça e gado ou seja, auto-suficiente e sustentável muito  antes dessas palavras serem recorrentes nos dias atuais.

 Sr.Anísio é o primeiro produtor de cachaça de Salinas a envelhecer cachaça em tonéis de Bálsamo e rotular seu produto. Para a época isto significou uma forma de seus consumidores identificarem sua produção principalmente em Montes Claros, cidade vizinha e grande pólo de  comércio e distribuição de sua cachaça. Para o produtor uma forma de agregar valor. O mais importante: sem ambição, já que segundo relatos, Sr Anísio não colocava o lucro como uma prioridade.


Bancada de madeira maciça

Geraldo Santiago me mostra a bancada onde o Sr Anísio também trabalhava como marceneiro e pelas invencionices é possível perceber seu cuidado por manter tudo funcionando, tudo “tinindo”, prova disto é o Chevrolet  Lead Master 1947 muito conservado e  como diz o povo "rodando mais que notícia ruim". 
Acervo da Fazenda Havana


Se mudar têm um preço, qual o preço de não mudar?

O antigo apontando o para o presente, o novo voltado ao passado

Muitas pessoas me perguntam se a cachaça Havana/Anísio Santiago tem justificativa para custar o que custa já que chega por São Paulo e Rio de janeiro beirando os quatrocentos reais. Então vamos lá:
Copo Furado e Anísio Santiago: história social da cachaça

Primeiramente é importante salientar que a cachaça é produzida pela família Santiago com o cuidado de manter todas as características de produção do período em que Sr Anísio Santiago estava à frente. Neste sentido lembro do amigo Nando Chaves da cachaça Séc.XVIII de Cel. Xavier Chaves- MG. Nando costuma dizer:  “...Thiago eu não posso fazer a cachaça do jeito que quero, eu preciso fazer uma cachaça respeitando a tradição do que se fazia no século XVIII...”. Este também é o cuidado da família Santiago: respeitar o legado construído pelo patriarca.

A propósito, engenhos e alambiques com a história da fazenda Havana nos remetem à discussão sobre a adequação destes patrimônios históricos à legislação vigente para a produção  de cachaça pois nem sempre as exigências do MAPA(Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento) consideram o elemento histórico no que se refere à estrutura arquitetônica da unidade produtora. Com isso muitos produtores de cachaça de fazendas e engenhos históricos acabam tendo um gasto maior em manter a estrutura histórica e adaptá-la às novas exigências do que se construíssem uma unidade produtora completamente nova.  Engenhos com alambiques como Havana, Séc. XVIII, Colombina(fazenda do Canjica), Barra Grande (SP) são experientes nesse assunto que merece bastante carinho.


Moenda modelo "trapiche" acervo da fazenda Havana
 O canavial ainda preserva a cana Java do tempo de Sr Anísio. A fermentação continua sendo feita à base de milho produzido na própria fazenda. A destilação em equipamento de cobre ainda é feita em um destilador do tipo “Tromba de elefante” sem serpentina, com alonga e sem deflegmador. 



Estes são elementos que vão interferir diretamente não apenas no sabor do produto mas também no rendimento de cada destilação.
Este rendimento tende a ser menor comparado com os equipamentos de modelos mais recentes. A condensação é feita através da água que resfria o Capelo ou Capitel, parte superior após a coluna do alambique, que é bem pequena! A panela do alambique é aquecida por fogo direto. 

Há que se lembrar que no copo a Havana/ Anísio Santiago do alto dos seus 44,8° Gl ostenta um vivo colar de persistência incomum nos dias atuais onde os produtores têm preferido teores alcoólicos menores e mais "acessíveis" ao grande público. Eis a análise sensorial poética de minha autoria:
Havana/ Anísio Santiago

No braço uma garrafa
Um sabor na memória
Pungente e autêntica
Floral agreste é sua história
É quente, quase nordeste
Especiarias, erva-doce
E como se manjericão fosse
Norte-sul, leste- oeste
Borbulha um colar de arte
É num beijo assim a minha parte 
Sol mais forte que o daqui
Um calor indefinível
Sabor bom imprevisível 
Desses feito o do pequi
Anis de Anísio
Santiago ficou perto de Havana
Pra quem gosta de cachaça
Essa é mais que u'ma garrafa
É alcançar uma graça
Abraço forte de quem se ama
Thiago Pires

Salvo as falsificações, nunca escutei de alguém que a Havana/ Anísio Santiago estivesse fora de padrão, o que é sinal de uma ótima padronização, atributo das melhores marcas. 


A simplicidade do "Tromba de Elefante"

Estas já seriam algumas especificidades que confeririam à Havana/Anísio Santiago elementos de exclusividade mas não pára por aí. No quesito envelhecimento Cléber Santiago nos conta que a Havana possui um padrão conferido por seus tonéis antigos de bálsamo de Salinas. Recentemente adquiriram novos tonéis mas para se ter um ideia estes tonéis só vão ser utilizados praticamente daqui a oito anos já que como dornas novas ainda vão demorar um tempo para entrar no padrão das outras dornas usadas para a Havana/Anísio Santiago.
Salinas e sua icônica madeira de Bálsamo

 Outro elemento que confere um diferencial é que segundo Geraldo Santiago, desde que seu Anísio estava à frente da fazenda Havana sempre teve por hábito remunerar seus trabalhadores acima da média e têm procurado manter este histórico. Devemos lembrar que a cachaça Havana/ Anísio Santiago possui selo de indicação geográfica e certificação de orgânico. Sendo assim independente de você gostar de bálsamo ou não, de achar a embalagem muito simples ou qualquer outra coisa, é preciso considerar o conjunto da obra, o estado de arte.  
Sala de fermentação impecável
Estes seriam elementos materiais que poderiam justificar um preço acima da média em se tratando de uma cachaça envelhecida por oito anos em bálsamo. Há que se considerar os intangíveis, os elementos que agregaram valor à marca por conta de sua história e do protagonismo de seu produtor. Há que se considerar que a família optou por manter viva a história e que isto possui um custo mínimo.
Paróis. Acervo da Fazenda Havana

 Geraldo aponta como a concorrência de hoje em dia é um elemento com o qual não consideravam há vinte anos atrás. Agora em 2019 Salinas possui outras cachaças com história e têm procurado do seu modo apresentar outros ícones. Há cinquenta anos atrás cachaça de Salinas era sinônimo de Havana. Isto não significa que a cachaça perdeu valor, pelo contrário, para manter sua forma de produção intacta, entendeu que mais valioso que seu sabor, que em si já é algo que merece alguns comentários, é sua trajetória, sua família, sua história e a relação com seus clientes.



A Havana/ Anísio Santiago talvez seja a marca de bebida brasileira mais falsificada em mercados sem procedência. Isto também cobra dos produtores buscar formas de garantir a autenticidade do produto, seja na questão do líquido, seja na questão do rótulo.  Fato é que a marca é um ícone e ícones são construídos pelo tempo e pela autenticidade.
Geraldo e ao centro Cléber Santiago: Havana em boas mãos de gente boa

Depois de um bom papo, de adquirir minhas garrafas digo que sou curioso quanto à matriz da Havana/ Anísio Santiago, ou seja a versão branca, sem amadeiramento. De pronto Cléber me pergunta se tenho uma garrafa. Não! Eles conseguem uma long neck de 275 ml e a enchem com uma matriz branca. Essa não é a Havana, essa é não é a Anísio Santiago. Essa é a matriz da Havana. A matriz da Anísio Santiago. Esse produto não existe no mercado. Mais uma vez me sinto um privilegiado, presenteado por aquela jóia e tenho certeza que a confiança e o acolhimento da família já seriam um grande presente. O sensorial deste líquido deixo guardado com os amigos com que fiz questão de compartilhar.



Um abraço forte como cachaça!




terça-feira, 11 de junho de 2019

Um "Motocana" na Havana


Já no domingo à noite muita gente saindo de Salinas. O festival e seu último dia fechando com um show do Falamansa (ah mais eu tô rindo à toa...) à noite. Do ponto de vista musical, muito legal o show e a estrutura.  

Chamo atenção que muita gente de Salinas do lado de fora do festival não consome necessariamente a cachaça da terra. As barraquinhas têm drinks e outras batidas coloridas feitas à base de Vodka. É isso mesmo, santo de casa ou cachaça de casa, não faz milagre nem em Salinas e mesmo não sendo uma característica só de Salinas, esse fenômeno é muito sério e precisa ser refletido por todos nós que queremos ver a Cachaça em um lugar de maior valorização.
      
 Em relação ao festival é pertinente salientar como este movimenta a cidade. É um festival simples, comparado com outros que possuímos em outras localidades porém é um festival bem organizado. Na edição de 2018 não observei etapas educativas ou algo relacionado ao mundo dos drinks. Para este ano de 2019 foi com alegria que recebi de Gilmar da Terra de Ouro a notícia dos cursos que serão oferecidos no Instituto Federal de Salinas nos dias que antecedem o festival. Confira a Programação:
Instituto Federal de Salinas promovendo cursos da área da Cachaça

Curtido o show do Falamansa ando alguns metros em direção ao Panorama Hotel que com a saída dos hóspedes agora tinha vaga.  Durmo cedo pois dia seguinte vou a fazenda Havana.




Moto-cana
Como disse, praticamente todo mundo que tinha ido para o festival na segunda feira já tinha ido embora. Patrícia e Leandro idem.

Tentara arrumar uma carona com Sérgio da Obra de Arte mas este tinha ido para a roça. Outro camarada que tinha conhecido em uma feira em BH, o Marcelo, aluno do Instituto Federal de Salinas mesmo sempre solícito, desta vez não pôde me auxiliar no translado à fazenda Havana.
Entrando na Fazenda Havana


E assim não pude fazer nada diferente do que procurar um moto táxi para que me levasse à fazenda Havana. No final das contas valeu a pena  apesar do vento frio da rodovia e da falta de espaço afinal também queria realizar o sonho da Havana própria e trazer minha garrafa né. 

Uma preciosidade desta só poderia ser harmonizada com uma música à altura. Então, fiquem com esta descontraída apresentação no trechinho "O Fortuna", da ópera Carmina Burana de Carl Orff.  


quarta-feira, 5 de junho de 2019

O Brinco de Ouro da Preciosa Sabinosa Peladinha.

Estante com as marcas de Sr. Sabino

Deixem explicar esse título antes. Estas são marcas do Sr Sabino. Chegamos em suas terras no fim de tarde deste segundo dia de Salinas. Já ouvira falar de Sr Sabino e lá conheci este figuraça!
O elemento cultural Cachaça em Salinas é muito forte. Observei cachaças em vitrines de lojas de móveis e eletrodomésticos. Quem não produz cachaça têm um parente que produz, ou vende, representa, alambica...enfim, a cidade tem muita relação com a produção de cachaça e sua economia gira em torno disso.

Quando temos a oportunidade de conhecer uma pessoa como o Sr Sabino nos deparamos com uma testemunha e ao mesmo tempo um ator das transformações pelas quais a cachaça têm passado. 
Conversamos sobre tudo: legislação, multas, distribuição e frete, rótulos, empréstimos de fermento...

Seu alambique fica mais perto do tal Valley Hill hotel, bem no trevo de entrada da cidade. Passando a porteira um curral e muita cana. Ressalto que estes alambiques foram facilmente visitados porque estávamos com o Sérgio da Cachaça Obra de Arte como guia porque do contrário, demoraríamos  um pouco mais de tempo para achar exatamente a localidade dos engenhos (nem todos têm placas indicativas).
Sr. Sabino no Festival sendo servido por Tito Moraes


Da branca prata (pura ou inox) a qual me parece que Sr Sabino não valoriza tanto  (serviu-me porque insisti que queria provar a branca) à mais amadeirada, Sr Sabino nos apresenta todo seu portfólio encerrando com um Carvalho que está “curando” para ser uma reserva especial. Provamos da Sabinosa, Preciosa, Brinco de Prata, Brinco de Ouro, Peladinha.

Suas cachaças possuem uma apresentação simples mas chamam atenção a variedade de madeiras com que trabalha.   

Brinco de Prata( jequitibá)  e Brinco de Ouro (Bálsamo)
Ando um pouco pelas suas instalações. Ainda não estava alambicando. Observo que possui uma produção volumosa com muita cachaça armazenada que dali despacha para o Brasil inteiro. Sr Sabino foi muito acolhedor e disse um “volte aí” como se Salinas ficasse “pertim, pertim”.



Devidamente abastecidos, rumamos para o descanso mas confesso que trago uma cena na memória: o fim de tarde em seu Sabino. A terra seca, o cheiro e o mugido do gado e um poente avermelhado apresentam um sertão que até quer lembrar o nordestino mas é diferente: o do norte de Minas. Filho de nordestinos como sou talvez precisasse considerar mais esse portal do nordeste que é o norte de Minas. Seco, amadeirado como o Bálsamo, intenso como o Pequi, forte como a cachaça.



terça-feira, 4 de junho de 2019

Domingo em Salinas


Acordo com um cansaço e uma fome arrebatadores. O corpo e principalmente os sinos da face avisando que no ritmo do dia anterior, hoje não! Já que a carcaça mandou, melhor obedecer. Um café reforçado muita água com um pouco de prudência não faz mal a ninguém. Um contato com Patrícia e Leandro da Acqua Mineira e tudo certo para uma carona ao primeiro alambique do dia: o da cachaça Terra de Ouro. 


A Terra de Ouro
Um dos Alambiqueiros da Terra de Ouro


A Terra de Ouro se diferencia das demais marcas de Salinas principalmente por ser fruto do trabalho de produtores de cana unidos em cooperativa que acharam na produção de cachaça uma maneira de unir seu trabalho agregando valor.

A cooperativa existe desde março de 2002 e seu responsável o Sr Gilmar Freitas em pouco tempo demonstra ser bom de papo, de produção de cachaça e de conta (impostos, legislação, preço de garrafa, frete...). Pouca vezes vi alguém saber as "ST"(substituição tributárias) de cada estado, impressionante! 
Sr Gilmar Freitas, presidente da Cooperativa Terra de Ouro


Por ser um domingo o alambique estava fechado e mesmo do lado de fora do engenho o cheiro do fermento vivo. Para se ter um ideia da produção da Terra de Ouro:

A produção média é de 180 mil litros
Exportam com o nome de Terra de Ouro para a Alemanha e Itália
A cooperativa possui 108 cooperados
Cada alambicada produz em torno de 150 litros
São uma cooperativa de produtores de cana
A cooperativa que produz a cachaça Terra de Ouro

Sr Gilmar nos conduz até o alambique. Dois equipamentos de cobre com coluna e pratos com capelo. Não utilizam deflegmador e segundo seu alambiqueiro  isto dá um paladar muito rico e diferenciado em relação às demais de Salinas. A disposição dos alambiques chama atenção pois toda a volta da água de refrigeração ocorre com canos suspensos.  Como apontei anteriormente, a Terra de Ouro foi a primeira cachaça de Salinas com registro a ser vendida prata, pura, cristal, armazenada em tonéis de aço inox.

A fermentação estava com as leveduras sendo reforçadas mas mesmo assim era possível observar sua ativa movimentação. Conversando com o alambiqueiro ele me mostra dois fermentos, um já elaborado com milho, sendo reforçado com o aumento gradual do brix  e outro feito somente de caldo de cana, que segundo ele,  demoraria um pouco mais que o de milho, mas de sabor diferenciado.
Um dos alambiques da Terra de Ouro


Enquanto conversávamos chega um caminhão com cooperativados trazendo cana, e ali mesmo pudemos experimentar o caldo de cana da Terra de Ouro. Início de safra e uma cana com 22 graus brix. Um delícia sobretudo servido com um harmonioso limão galego.
A estrutura da produção é simples, muito limpa e organizada e após dizermos que estivemos na produção da cachaça Salinas Sr Gilmar reforça:  “...aqui vocês não ver aquela estrutura não...”. De fato o tamanho não é o mesmo mas o conhecimento de cachaça e o produto fica à altura da conterrânea.

 É interessante que no local da produção da Terra de Ouro ficou muito perceptível a diferença de temperatura em relação à Salinas. Novo Horizonte fica mais no alto e mesmo de dia é fácil sentir frio por conta de uma brisa que sempre sopra pelo menos quando lá estive (julho).


Da produção rumamos de carro para o envase que ocorre em outra localidade. Mais uma vez um imenso galpão de estrutura limpa, organizada e bem planejada. A cooperativa não produz só a Terra de Ouro. Portanto parte de sua produção já é encomendada por produtores locais que são clientes de longa data e já possuem as próprias dornas dentro da adega da Terra de Ouro.

Conversando sobre vendas, impostos, política digo ao Sr Gilmar que conheci a Terra de Ouro em uma antiga feira do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário, período Lula/ Dilma) que ocorria na marina da Glória, no Rio de Janeiro. Sr Gilmar diz que certamente foi ele que me serviu a primeira Terra de Ouro pois ele que participou de todas as edições e relembra com entusiasmo o sucesso nessas feiras em uma época que nem cartão de débito a maioria usava. Ele arremata, : “ ...na última feira servi cinco mil doses de Terra de Ouro...”!
Junto à um dos Tonéis da Terra de Ouro
Uma cachaça sensacional da qual, se já era fã, virei seguidor e mais admirador ainda principalmente pela organização e por mostrar que mesmo os pequenos podem estar na cena da cachaça através da força da coletividade.

Parada para um almoço em um chalé num dos pontos mais altos da cidade. Visual legal, muitos apreciadores de diferentes locais do Brasil, Chopp de qualidade e ...um chef de cozinha apresentando um leitão à pururuca. Por incrível que pareça eu ainda sem beber neste dia. Foi assim que de lá rumamos para a Sabinosa de Sr Sabino.